segunda-feira, 25 de junho de 2012

Primórdios do Conceito de Gênero*

Heleieth I.B. Saffioti**

Qualquer que seja a avaliação que se tem de O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, publicado há meio século, não se podem negar dois fatos: seu pioneirismo e sua influência em muitas gerações, assim como na academia.
A pesquisa bibliográfica que informa o livro foi longa e a própria redação tomou mais de ano, somando-se distintos períodos entre 1946 e 1948. Se, ainda hoje, as relações homem-mulher são amplamente consideradas um tema secundário, pode-se imaginar o significado de uma escritora de projeção mundial dedicar-se ao estudo da mulher, fase de resgate da identidade feminina que precedeu a formulação do conceito de gênero, por Stoller, em 1968, e sua expansão a partir do artigo de Gayle Rubin, “The Traffic in Women”, em 1975. Em uma França humilhada, recém-saída da ocupação alemã e apresentando as seqüelas de uma terrível guerra, não era certamente fácil empreender a tarefa de pesquisar a mulher e sobre ela escrever. A sociedade de então tinha, é óbvio, outras prioridades e considerava ocioso este debate. Entretanto, o livro ganhou a imprensa internacional, foi traduzido para muitas línguas e provocou enorme impacto. Isto não significa que tenha tido igual penetração em todas as nações. No Egito, talvez o mais liberal dos países árabes majoritariamente muçulmanos, o livro nunca foi publicado integralmente. Excluiu-se
o capítulo sobre a lésbica. A União Soviética não abria espaço para uma tradução russa, que só apareceu em 1993. Estes fatos revelam a relação de amor e ódio estabelecida por governos, povos e pessoas com o livro. Imoral para uns, pouco científico para outros et pour cause perigoso para quase todos, o livro foi
descrevendo sua trajetória de, no mínimo, abalar crenças.

* Recebido para publicação em setembro de 1999.
** Departamento de Sociologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

cadernos pagu (12) 1999: pp.157-163


A convivência de Beauvoir com Jean-Paul Sartre, a admiração que nutria por ele e, seguramente mais importante, a convicção que alimentava da justeza do existencialismo, levaramna a adotar esta filosofia. Efetivamente, podem-se encontrar em O Segundo Sexo as principais categorias expostas por Sartre em O Ser e o Nada, tais como ser em si, ser para si, mitsein, situação. Esta última adquiriu especial relevância no livro de Beauvoir. Acadêmicas situadas contra a obra insistem num papel subordinado da autora em relação a seu companheiro como responsável por sua adesão ao existencialismo. Prefiro pensar de outra maneira, mesmo porque esta filosofia ganhou muitas adesões e prestígio. Utilizando-se o conceito de situação, cunhado por Sartre e amplamente empregado por Beauvoir, pode-se chegar, sem nenhuma benevolência (tampouco nenhuma maledicência) a minha percepção. Beauvoir expressou sua situação. A meu ver, não faz sentido concluir que sua adesão ao existencialismo decorreu de sua menor importância em relação a Sartre ou de sua subordinação a ele na relação amorosa. Dependentes emocionais somos todos nós, homens e mulheres, quer nas relações amorosas, quer nas relações de amizade. E isto advém de nossa necessidade de obter aprovação social e afeto. Beauvoir mostrou-se capaz, não apenas de inovar em suas condutas, como de persistir em inovações reprovadas pela sociedade de então. Manteve, por décadas, uma relação amorosa aberta, fez vários abortos, recusou-se a ter filhos, lutou por causas que, ainda hoje, se consideram justas, mas ousadas. Não há, portanto, motivos racionais para denegri-la. Pode-se faze-lo no domínio emocional. Atualmente, há milhares de mulheres que escolhem não ter filhos. É verdade que a sociedade as aceita com dificuldade. Porém, não são execradas como Beauvoir, que, inclusive na opinião de feministas, pecou por haver negado a maternidade. A rigor, Beauvoir poderia ter optado por não ser mãe; não deveria, contudo, ter escrito (alardeado) sobre o fardo da maternidade. Adotou como filha Sylvie Le Bon, tendo-lhe
doado o nome de Beauvoir. Curiosamente, Sylvie apresenta grande semelhança física com sua mãe adotiva.

É também feminista, tendo realizado seu mestrado na área de gênero. Beauvoir é, freqüentemente, criticada por ter pretendido estudar a mulher e não mulheres. Ou seja, referiu-se a um universal, quando deveria, na opinião de suas(seus) exegetas, ter mergulhado nas condições específicas dos distintos contingentes de mulheres. Este, entretanto, era o padrão da época. Embora mais de século e meio antes, Olympe de Gouges redigiu a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, colocando no feminino o famoso documento informado pelos ideais da revolução francesa. Ninguém acusa nem os homens que escreveram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, nem Gouges por terem usado o termo genérico. Não sendo Beauvoir historiadora, não se podia dela esperar, na década de 1940, que particularizasse os segmentos estudados. O livro certamente não teria tido o alcance que teve se não se referisse ao universal MULHER.
Por não ter familiaridade com o ofício de historiador, Beauvoir incorreu, sem dúvida, em erros. Deixou de verificar, por exemplo, que houve espaços/tempos em que a maioria das mulheres alcançava a transcendência e que em qualquer espaço/tempo sempre há mulheres que não se limitam à imanência. Por esta razão, enxergou apenas a dominação masculina, não tendo visto a igualdade entre homens e mulheres,
presente em certas sociedades. Não se estaria pedindo demais a uma literata, todavia, quando se apontam erros neste domínio? Como não-historiadora, Beauvoir não poderia examinar documentos, mas buscar na literatura sobre o assunto os subsídios para seu livro. Como não havia historiadoras feministas na época,
não se havia ainda revelado o papel das mulheres na História e, por conseguinte, enquanto SUJEITOS. Logo, ela foi vítima da ignorância de outros estudiosos, como Engels, em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, foi vítima de uma etnografia muito insuficiente. Se atualmente, passados cinqüenta anos, ainda não se conhece a História da perspectiva de gênero, pode-se compreender a pobreza do material consultado por Beauvoir.

Cada intelectual cumpre um papel, de acordo com sua formação. Não lhe cabia consultar arquivos. É exatamente em razão de ainda se estar muito longe de ter completado a tarefa de reconstituição da história da mulher que não cobro de pesquisadores a perspectiva de gênero quando se debruçam sobre o objeto mulheres. Como o conhecimento da própria história contribui para o empoderamento de uma categoria social, penso que teremos muito a fazer, considerando o feminismo como uma perspectiva político-científica, cujo objetivo não consiste apenas em ampliar o acervo de saberes, mas também em criar mecanismos políticos para a construção da igualdade social entre homens e mulheres. A mais famosa frase de O Segundo Sexo é, inegavelmente, “On ne naît pas femme, on le devient” (Ninguém nasce mulher, torna-se mulher). Exegetas críticas(os) deste livro tendem a encontrar em O Ser e o Nada a explicação filosófica para seu significado. Não é meu caso. Creio que aí reside a manifestação primeira do conceito de gênero. Ou seja, é preciso aprender a ser mulher, uma vez que o feminino não é dado pela biologia, ou mais simplesmente pela anatomia, e sim construído pela sociedade. Evidentemente, Beauvoir não possuía o arsenal de conceitos e teorias com que contamos na atualidade, mas se dirigiu certeiramente ao ponto essencial. Foram-nos necessários três decênios desde a primeira formulação do conceito de gênero para construir este acervo. O livro de Beauvoir, se não era o primeiro com pretensões científicas – podem-se lembrar alguns de feministas que escreveram no fim do século XVIII e no XIX, dentre eles dois homens, J. Stuart Mill e F. Engels, e mulheres como E.Candy Stanton, M. Wollstonecraft, Flora Tristan etc. – era o
primeiro e mais completo questionamento dos valores que subsidiavam a construção social do feminino. O contexto social, político e intelectual da produção de O Segundo Sexo explica grande parte de seu conteúdo, como também de seu êxito.

Li O Segundo Sexo em 1962, quando comecei a pesquisar a temática da mulher. Embora estivesse estudando professoras primárias e operárias têxteis em Araraquara, problemática bem localizada, fiquei fascinada com o livro. A literatura a respeito do tema era tão restrita e, algumas vezes, incidia sobre universos empíricos tão acanhados, que o livro em pauta sobressaía. Era realçado também pela coragem da autora de focalizar temas tabus. Isto significava, na década de 1960, o desvelamento de dimensões da vida escondidas pelos poderosos. Assim, o livro tinha também o sabor do proibido. Não procurei averiguar, na
parca bibliografia então existente, a justeza dos fatos históricos analisados. Para meu pequeno conhecimento de tudo, O Segundo Sexo constituía um manancial de saberes. Devo ter guardado em alguma parte de minha memória aquilo que consegui apreender da obra. Ainda que eu não haja, em meu primeiro livro, escrito em 1966 e publicado em 1969, mencionado a tão feliz frase, a idéia nela contida devia estar pautando meu pensamento, pois trabalhei o feminino e o masculino em termos de elaboração social do sexo. Um dos fatores que me impediram de usar conscientemente O Segundo Sexo e de voltar a lê-lo para melhor aproveitá-lo foi a leitura do livro de Betty Friedan, publicado nos Estados Unidos em 1963, traduzido para o português em 1971, A Mística Feminina. Não obstante seu grau de cientificidade não ser maior que o do trabalho de Beauvoir, faloume mais de perto em virtude de alguns elementos nele presentes, como a crítica ao método funcionalista e a atualidade dos fatos focalizados. Lamento até hoje que isso haja ocorrido. Perdi a oportunidade de beber da primeira mão e bebi da segunda. Com efeito, aprendi, em janeiro deste ano, no colóquio comemorativo do meio século do livro de Beauvoir, em Paris, pelos trabalhos de algumas feministas norte-americanas, que B. Friedan plagiou não apenas idéias, mas também parágrafos inteiros de O Segundo Sexo. Reli este livro, porém, não reli o de B. Friedan. Não tenho, todavia, nenhuma razão para duvidar do plágio, na medida em que a identidade de vários excertos dos dois livros foi revelada através de leitura em voz alta no colóquio.

O que diferia entre os dois livros, nos excertos lidos, era o idioma, nada mais. A pressão sofrida por Friedan em seu país foi tão grande, que ela admitiu sua omissão no que tange a esta fonte. Este fato tornou este segundo livro muito menos científico que o de Beauvoir, além de ter revelado um traço do caráter da norte-americana em pauta extremamente reprovável em qualquer área, em especial na ciência. Sinto tristeza de não haver percebido o plágio e, em função disto, não haver atribuído a quem de direito o crédito merecido.
Cabe-me, contudo, apontar uma questão de ordem metodológica para explicar uma resistência emocional minha para usar Beauvoir. Minha adesão ao materialismo histórico tornou-me crítica de uma visão que considerei excessivamente culturalista. No início da década de 1960, o conceito de cultura envolvia crenças, normas, valores, mas não a praxis, fenômeno que tenho como muito importante na construção de homens e mulheres e suas relações. Como Beauvoir, ainda que utilizando Engels, critica o materialismo histórico, situando-se na ontologia fenomenológica de O Ser e o Nada, julguei-me capaz – quanta pretensão! – de fazer-lhe o contraponto, partindo para uma análise centrada em relações econômicas, estrutura de poder e descompasso entre o material e o ideológico, então chamado de infra-estrutura e superestrutura. Obviamente, empreguei uma literatura distinta da de Beauvoir, primeiro porque nossos interesses não eram idênticos, segundo porque nunca tive sua cultura e terceiro porque uma parte destas publicações surgiram depois de 1949. Explicitese meu interesse em focalizar fatos da Europa Ocidental, dos Estados Unidos e do Brasil, universo muito mais restrito que o da pesquisa de Beauvoir. Aqui, o acesso a publicações com dados de outras áreas do mundo, como União Soviética, era extremamente difícil. Sofri durante muitos anos, sobretudo nos cinco primeiros, de literaturapenia (desculpem-me pelo neologismo). Ao lado disto, como já mostrei, aproveitei mal o livro de Beauvoir.

As ciladas da memória inconsciente talvez tenham trazido à tona idéias que julguei minhas, mas que, na verdade, eram de outrem. O que me garantiu originalidade face ao livro sob exame foram minhas categorias de análise. Neste domínio, com efeito, para o bem ou para o mal, não incorporei nada do livro sob exame. Até hoje, passados tantos anos de minha primeira leitura do livro, não creio que as categorias analíticas nele empregadas sejam heurísticas. O valor da obra reside na narrativa de fatos históricos, no levantamento de hipóteses que pudessem indicar a gênese da dominação masculina e, especialmente, no desvelamento de temas tabus. Rigorosamente, tudo isto representava tão alto grau de iconoclastia, que o livro tinha que provocar impacto. Lamentavelmente, parece que as novas gerações não o lêem. As gerações próximas da minha, entretanto, devotam profundo respeito pelo livro e por sua autora. Como toda obra é datada, não se pode descontextualizá-la. Na França do imediato pós-guerra, este livro só poderia ter sido escrito por uma mulher feminista, sexualmente livre, questionadora das instituições. Tudo isto demandava muita coragem e Simone de Beauvoir a teve. Para os que a vêem como uma sombra de Sartre, caberia perguntar qual dos dois influenciou mais o mundo. Sartre, sem dúvida, com O Ser e o Nada, integra a galeria de importantes pensadores deste século. Passada, porém, a onda existencialista, ele não se emparelha com filósofos de maior envergadura. O Segundo Sexo influenciou sobremodo o pensamento feminista e tem contribuído para transformar não somente a visão de milhares de mulheres sobre a vida em sociedade, como também suas condutas. Desta sorte, des-re-construiu – e continua a faze-lo em áreas do planeta onde penetrou recentemente – o feminino e, por via de conseqüência, o masculino. E... tudo começou com O Segundo Sexo. Hoje, estamos no gênero, terreno no qual “on ne naît pas femme, on le devient”.